terça-feira, 23 de abril de 2024

SÓLIDOS, LÍQUIDOS E... ÁCIDOS

Venancio Junior

Os estados físicos da matéria são conhecidos ainda no ensino fundamental. A ciência desvenda os mistérios que compõe o nosso planeta com pesquisas e estudos aprofundados. Conhecer o comportamento de cada matéria é fundamental para a evolução da vida humana, animal, vegetal e mineral.

Esta terminologia não é aplicada somente no campo da ciência das matérias. Na área de humanas tem sido intensificada esta aplicação, especificamente no vasto campo da psicologia do relacionamento que se define no meio do trajeto quando já existe um longo trecho percorrido. Porém, não existe relacionamento gasoso. O que se aplica, na verdade é uma força de expressão que revele o “status-quo” da parceria em que duas pessoas no relacionamento conjugal ou mais pessoas, dependendo do contexto, decida se envolver o que é aplicável também na vida profissional ou social por força das circunstâncias. Devido às inúmeras dificuldades em que qualquer tipo de relação sofre, tomei a liberdade em incluir o estado ácido. O ácido pertence ao estado líquido, porém, é corrosivo. Neste caso, então, existem três tipos de relacionamento, sólido, líquido e ácido. Percebi que o relacionamento ácido, contrariamente aos dois primeiros, é um tipo em que a pessoa ainda esteja envolvida por obrigação com alguém por motivos que fugiram das circunstâncias normais. Pode ser financeiro quando não se tem recursos para continuar a vida ou pelos filhos para não gerar traumas. Os três tipos são aplicados em todos os níveis de relacionamento, seja social, conjugal ou profissional. Nenhum dos três é perfeito onde os problemas são plenamente factíveis.

De cara já desmistifico qualquer definição que espalham por aí de que seja possível viver um relacionamento com liberdade sem entrega. Não é possível. A partir do momento que se decidiu conviver com alguém, o óbvio é que haja uma entrega, não importando se é em maior ou menor grau. Alguma coisa de si terá de ser doada para o parceiro ou parceira. Quanto mais tempo de convivência, mais intimidade, mais envolvimento e mais entrega. No momento que houve a entrega, será que a pessoa que recebeu um “pedaço” de você fará bom proveito? Será que você fará bom proveito do pedaço que lhe foi dado? O sentido de dar, neste caso, não é uma transferência de propriedade, mas, descobrir e usufruir do melhor da pessoa.

A melhor forma de se relacionar é na teoria e a pior é na prática. Esta “verdade” nunca muda para os pessimistas e os desiludidos. O problema é que muitas pessoas ainda se mantêm no campo da teoria por medo em arriscar. Alguns para amenizar o sofrimento da prática, mantem um pé dentro e o outro fora. Mais desconfiam do que confiam na outra pessoa.

Relacionamento é a melhor e, talvez a única forma de crescimento como pessoa. Digo isto porque envolve mais dedicação ao próximo do que qualquer outra postura no compromisso com o semelhante. Tem aquelas pessoas que preferem viver sozinhas, mas, mesmo assim não conseguem se relacionar consigo mesma e tratam as outras pessoas com rispidez. Imagine quando alguém “invade” a sua privacidade? Agem desta forma por insegurança e medo de que queiram algo de si. Será que decidiu viver só porque se tornou alguém insuportável? Não, os insuportáveis são sempre os outros. Não existe vida social e não existe família sem o processo do relacionamento. Na religião, não existe igreja sem o relacionamento porque a estrutura de formação é ajuntamento e comunhão.

O relacionamento sólido é aquele que tem raiz e mesmo diante de dificuldades, se mantêm intacto na estrutura com objetivos de construir valores para continuarem juntos. As pessoas envolvidas têm o mesmo objetivo e isto facilita consideravelmente a relação. Apesar da pulverização do conceito de relacionamento, ainda existem casais, amigos e familiares que se amam. Porém, tudo tem o seu limite, mesmo o relacionamento sendo sólido, não se deve deixar que o coração seja absoluto nas decisões onde mais apanha do que bate. Por outro lado, a razão é necessária para dar equilíbrio e força na construção do relacionamento. Razão e coração devem caminhar juntos e serem parceiros na alegria e na dor um suportando o outro.

No relacionamento líquido, há meramente um compromisso, porém, sem se aprofundar não formando raiz. Geralmente a motivação é por algum interesse conveniente. Durante o tempo que permanecem juntos não se aprofundam e permanecem apenas na superfície e se dilui por falta de envolvimento. Este tipo de relacionamento em que não há envolvimento e nem consta na agenda qualquer movimento neste sentido, geralmente é movido por interesses que não visam construir pilares na relação, pois, o objetivo é apenas extrair da pessoa aquilo que lhe satisfaz, nada mais que isto. Muitas pessoas se tornam apenas úteis, inclusive, nos relacionamentos conjugais que, infelizmente, estão se tornando líquidos e quem sofre são os filhos e a sociedade. Antigamente a esposa era útil porque se limitava a cuidar da casa e o esposo porque pagava as contas. Este tipo de relacionamento mudou muito. A mulher tem adquirido com muito esforço e mérito o seu espaço de vanguarda na sociedade. Tem um outro ponto que, por incrível que pareça, também sofreu mudanças significativas, o ato conjugal no sexo. Alguns casais não eram criativos e se mantinham tradicionalmente em que o homem é ativo e a mulher passiva apenas para procriação. Com esta mudança de paradigma, nem tudo está perdido, ambos agora são, no mínimo, úteis um ao outro porque se descobriram no sexo. Conheço casais evangélicos em que cada um mora na sua casa e se encontram apenas para namorar. Morar juntos é algo impensável disse uma das partes. Um típico relacionamento líquido sem raiz.

O relacionamento ácido é o pior de todos. Muitos preferem o termo tóxico porque vivem sufocados na relação. Optei pelo termo ácido por causa da corrosão numa condição em que, por motivos que fugiram do controle, a permanência dentro do relacionamento persiste. A pessoa não está somente sufocada, mas, também se desintegrando por dentro. A alegria, o prazer, a criatividade e a esperança estão sendo corroídas. Por algum motivo há a obrigação em se manter na relação. Alguns exemplos, no trabalho quando o superior tem um comportamento em se impor à revelia do que seja adequado ao trabalho ou o ambiente é muito carregado pelo mau humor e reclamações, a falta de reconhecimento profissional e a instabilidade no trabalho tornam o relacionamento profissional muito ácido, porém, precisa se manter porque o trabalho é fundamental para o sustento. Na vida social, um vizinho ou um familiar que não coaduna com o tipo de pessoa e que sempre está provocando e qualquer reação comprometeria outros fatores importantes nos contextos da moradia e da família. A polarização política foi o principal motivo de muitos relacionamentos se tornarem ácidos e revelou a acidez de algumas pessoas. Estas pessoas que brigaram pelas redes sociais e nos encontros familiares ainda mantêm o contato, mas, o desgaste é inevitável e não há qualquer perspectiva de uma reconsideração de ambas as partes. Muitos casais, amigos e até familiares cortaram o relacionamento porque se tornou ácido. Optaram em se distanciar a utilizar o bom senso em manter o relacionamento. Quando isto é possível, resolve o problema em não se desgastar emocionalmente que é o que mais sofre.

Outro grande problema no relacionamento ácido, especificamente na vida conjugal que, além da obrigatoriedade no compromisso, está constantemente sendo construídos pilares para que o relacionamento forçosamente se mantenha, porém, a projeção no horizonte está sem perspectiva. Quem nunca ouviu falar que muitas pessoas, sem saber, dormem com o próprio “inimigo”. O pior deste nível é a confiança depositada o que, nesta condição, espera-se algo em troca. Como já afirmei noutra reflexão, relação é contato, mas, jamais deve ser a nível de agressão física. Nos últimos anos, temos visto nos relacionamentos que se tornaram ácidos muitos feminicídios. Contrariamente ao que se imagina, existe também o “masculinicídio” quando a mulher tem o objetivo de eliminar fisicamente o parceiro. O número é relativamente bem menor porque culturalmente o homem se julga o dominador. É diferente quando acontece por defesa pessoal em que a mulher estava sendo ameaçada. Em todo caso, estes absurdos extremos acontecem porque a relação se tornou ácida. Não existe matéria que resista ao ácido. Enquanto a superfície permanecer exposta ao ácido, a corrosão se aprofunda. É um termo apropriado porque relação é contato e não há resistência quando uma das partes perdeu o foco da vida a dois que é um dos pilares de sustentação do relacionamento. Há um outro grande problema também em que a acidez do comportamento corrói o charme, a elegância e a dignidade que são valores inegociáveis. O charme e a elegância ainda são possíveis recuperar, mas, o respeito com relação a dignidade quando se perde, não há atitudes que se reconquiste. O cônjuge sempre terá um olhar de desconfiança. Quem perde o respeito uma vez, perde duas, três vezes ou infinitamente porque o ácido corroeu e nem a psicologia conseguiu alguma forma que resgate a dignidade.

Infelizmente, há relacionamentos em que não se enxerga uma solução para diluir o ácido. Existem muitas pessoas que vivem ou sobrevivem dentro de um relacionamento em que o casal perdeu a sintonia e a sincronia. Há situações de perda de identidade quando o ninho fica vazio. Daí, a atenção se torna exclusiva ao outro e percebem que se tornaram “ilustres desconhecidos”. O olhar fica perdido e sem sentido e precisam realinhar o foco. O motivo em se manter dentro do relacionamento não é mais por amor e o carinho ao outro não faz parte das atitudes de afeto. Muitos casais não se separam porque não tem dinheiro, então, é melhor continuar casado e ter uma vida razoável. Outros além de não ter dinheiro, moram mal e são infelizes no relacionamento e seria muito pior separados, principalmente para a mulher. Nem vou entrar no mérito do relacionamento destes casais onde o fator financeiro é um problema porque há um conjunto de fatores que agrava a estrutura conjugal e o problema, talvez, não seja exatamente a incompatibilidade no relacionamento.

No caso conjugal, alguns fatores devem ser considerados. O maior índice de separação acontece nos casais que possuem boas condições financeiras. O índice ainda é maior quando a mulher é independente. Tem relacionamentos que se perdeu a conexão e não estão mais em sintonia. Conexão e sintonia mesmo similares, são coisas diferentes. Para que haja sintonia é preciso ter a conexão. Enquanto sem a sintonia, a conexão perde a razão de ser. O fato de não sintonizar o conteúdo digital, não significa que esteja sem conexão. No relacionamento, o ambiente é a conexão. O propósito é a sintonia. É possível sobreviver num relacionamento ácido porque ainda compartilham o mesmo ambiente, porém, estão fora de sintonia nos objetivos. Resolver esta questão é uma decisão muito pessoal. Cada pessoa deve considerar os ganhos e perdas. Ninguém merece viver uma vida onde as frustrações sejam incessantes. Cada pessoa tem o direito de ser bem-sucedido nas esferas da vida que o envolve. Por isto que falei sobre a razão e o coração, um dando suporte ao outro. Tem situações que, numa eventual e momentânea crise, o coração precisa se antecipar e realinhar o relacionamento. A razão deve entrar em campo quando a situação se tornou insustentável e não se consegue encontrar um denominador comum para que a sintonia seja restabelecida. O desgaste é o pior fator a ser considerado e a conexão deve ser interrompida imediatamente. Feridas estão abertas e as chances no processo de cicatrização serão bem maiores quando se cortar o mal pela raiz mesmo que o coração sofra.

Um detalhe importante para que haja mudança significativa é se reconhecer no relacionamento. Perceba que tipo de diferença houve na sua vida e se continua sendo a mesma pessoa do início. Nunca perca a razão no sentido de deixar o bom senso avaliar a qualidade sua e da outra pessoa antes que o ácido consuma o resto que ainda seja possível resgatar.

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