terça-feira, 11 de abril de 2023

TRADIÇÃO REFORMADA E DOUTRINA PENTECOSTAL NA PERSPECTIVA DO EVANGELHO

Venancio Junior

Desculpe-me pela presunção, mas, este não é um assunto tão polêmico e nem tão difícil de compreender como se julga nas igrejas e nos meios acadêmicos da teologia. Talvez a dificuldade esteja em saber como Deus age e qual o critério de escolha na manifestação dos dons. Com relação as inúmeras linhas de interpretação teológica, trata-se de uma pluralidade criada pelo próprio ser humano. Os dons também são diversos, porém, advindos de uma mesma fonte. Primeiramente devemos considerar que, se partirmos do princípio do evangelho, saberemos que não existem dois ou mais reinos de Deus para abrigar ortodoxos que é uma cisão da igreja católica que aconteceu no início do segundo milênio, os tradicionais/reformados que surgiram com a reforma de Lutero em 1517 e pentecostais que surgiram no começo do século 20 e mais recentemente na década de 60, os neopentecostais. A igreja é composta pelos justificados como um corpo só em Cristo. Diante disto concluímos que os questionamentos são restritos ao entendimento exclusivamente humano. Uma das maiores dificuldades em compreender o evangelho é que toda avaliação parte daquilo que se aprendeu dentro dos dogmas da denominação sem qualquer questionamento. Como o objetivo é esclarecer do ponto de vista do evangelho, então, é preciso, de certa forma, ignorar as diversas doutrinas dos homens. Jesus em Jerusalém, respondendo aos judeus que sempre o questionavam, afirmou "Examinais as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna, e elas mesmas são as que dão testemunho de mim" (João 5:39). Examinar é ler as escrituras e absorver o seu significado e, como o próprio Jesus afirmou que tudo se resume nEle.

Pentecoste é uma festa judaica que acontece depois de cinquenta dias após a páscoa que é a comemoração da libertação do povo judeu da escravidão do Egito e ficou muito associado a manifestação dos dons do Espírito relatado em Atos 2. Antes de prosseguir, preciso voltar alguns milênios até o tempo em que Deus conversava tete a tete com Moisés e a maioria acha que o pentecoste aconteceu somente a partir daquele evento de Atos. Pentecoste é manifestação espiritual e não tem forma ou ritual e nem como, quando ou um porquê específico para que o Espírito Santo aja na pessoa, pois, trata-se de relacionamento e intimidade com Deus que, em absoluto, seja um privilégio de alguns poucos iluminados. Óbvio que há na bíblia relações diferentes e pessoais de Deus para com cada indivíduo. Por exemplo, porque tratou a Davi que foi um adúltero como “segundo o coração de Deus”? Isto é muita intimidade. Muito antes de Davi, a relação de Deus com Moisés era como de dois amigos que as vezes até brigavam. Quer mais intimidade numa relação do que uma briga? Não me refiro àquela briga em que um quer destruir o outro, mas, discussão de valores e posicionamento sobre um determinado assunto. Moisés questionava a si mesmo como escolhido para libertar e conduzir o povo israelita a terra prometida que ele próprio não conheceu. Deus se permitiu discutir com alguns dos seus líderes que eram encarregados de conduzir o seu povo. Outro que também foi muito íntimo de Deus foi Jó. Deus se envolveu “pessoalmente” na vida de Jó e ainda por cima, determinou que o diabo não o matasse. É muita intimidade. Apesar de todo sofrimento possível e inimaginável, foi uma profunda intimidade esta relação de Deus com Jó. Todos foram seres humanos limitados e imperfeitos, porém, reconheciam a soberania de Deus em suas vidas. Pentecoste nada mais é que intimamente reconhecer esta soberania de Deus na vida e suas manifestações farão parte do processo de restauração da velha criatura. Em suma, as manifestações dos dons é uma consequência desta postura de rendição ao evangelho, caso contrário, nada fará sentido em termos de espiritualidade. Outrossim, o pentecoste não é um brinde para aqueles que são mais espirituais. A manifestação dos dons sempre existiu, porém, antes não eram conhecidos desta forma e tem o propósito em dar legitimidade à missão. Pentecoste sem a consciência da missão é como o talento infrutífero. Jesus no Ide enfatizou “...recebereis os dons e sereis minhas testemunhas”. Receber o dom e não sair em missão seria como jogar pérolas aos porcos.

Então, porque existe esta “briga” entre tradicionais que na sua maioria é composta pelas igrejas reformadas e de tradição calvinista e os pentecostais de doutrina arminiana? Os nomes foram “aportuguesados”, João Calvino era um teólogo francês e Jacob Armínio era um teólogo holandês. Não há relato de que nos seus fundamentos houve uma intenção em difundir os seus posicionamentos de forma correlata a doutrina tradicional ou pentecostal. O problema é que temos a necessidade em criar rótulos que nos identificam nos diversos contextos sociais e nas igrejas não é diferente e muitos até se orgulham em serem reconhecidamente tradicionais ou pentecostais. Esta postura nada mais é que valorizar a religião com um claro desvio de função. A igreja não tem o propósito de dividir ou excluir, mas, incluir as pessoas com o evangelho. Se o evangelho que está sendo difundido divide a igreja, este evangelho é essencialmente questionável.

As igrejas históricas tradicionais de doutrina reformada são as mais antigas desde a reforma protestante promovida por Martinho Lutero em 1517. Antes desta reforma, haviam somente duas igrejas cristãs, a católica que significa igreja-mãe e a ortodoxa que se desligou de Roma em 1054. Esta reforma de Lutero poderia afirmar que é fruto de uma manifestação espiritual que pode ser considerado como uma ramificação do pentecoste acontecido no Novo Testamento. A manifestação do Espírito Santo na vida humana é para provocar mudança no sentido de realinhar o caminho da espiritualidade. As igrejas pentecostais se julgam detentoras da legitimidade espiritual por buscar e receber os dons espirituais conforme descrito em Atos 2. Por outro lado, o zelo pela tradição bíblica não qualifica as igrejas oriundas da reforma como as que detêm o privilégio em ratificar as doutrinas descritas no evangelho. Pessoalmente julgo ridículo esta disputa que gerou mais cisão do que união comum e também nada de significativo trouxe a igreja em termos de discernimento espiritual. Os fundamentos do evangelho são para todos os que buscam a verdade que é Cristo. Tudo se resume nEle. Há um só mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, homem! Há um só Deus pai de todos! Então, como existiria duas doutrinas, duas igrejas ou dois povos escolhidos? Simplesmente não existe!

Não pense que estas linhas religiosas é algo recente. No tempo de Jesus já existiam diversos grupos. Os mais conhecidos foram amplamente citados na bíblia principalmente nos embates com Jesus que veio exatamente confrontar a religião/instituição. Observe abaixo as características de cada grupo:

Saduceus

Este grupo à qual pertenciam os sacerdotes era o grupo mais influente na época de Jesus. Eles controlavam o sinédrio que era a suprema corte, tinham também o controle econômico e político tanto é que influenciaram diretamente a condenação e morte de Jesus.

Fariseus

Este grupo acreditava na ressurreição, nos anjos e aguardavam o Messias. Eram observadores da lei judaica e tinham forte influência sobre o povo a qual pertenciam também os escribas. Eram denominados como legalistas.

Essênios

Este grupo não é citado na bíblia, mas, foi registrado pelos historiadores que se tratava de um povo que decidiu se isolar e viver uma vida em comunidade observando a fé judaica que aguardava a vinda do Messias.

Zelotes

Este grupo era o mais radical de todos se assemelhando aos atuais extremistas guerrilheiros. Mesmo pertencendo ao partido judaico, eles se opunham à dominação romana.

Apesar de todo este contexto da época já bastante confuso e dividido, a missão de Jesus foi exatamente quebrar estas barreiras e mostrar o verdadeiro caminho que era ele próprio. Mesmo assim, aqueles que seguiram a Jesus foram rotulados de cristãos. Jesus não criou nenhum grupo nominalmente e até criticou aqueles que insistiram em inserir o cristianismo numa religião e Jesus mais uma vez demonstrou que a verdadeira religião é atitude e não uma instituição. Mesmo com este claro exemplo, a instituição ocupa até os dias atuais o lugar que deveria ser ocupado pelos exemplos de Jesus. O evangelho é muito específico sobre as manifestações espirituais que se encontram na atitude e não na instituição. Diante disto, seguir e defender uma linha teológica como forma de legitimar a espiritualidade é sobrepor a instituição acima da atitude que revela a fé essencial. Pessoalmente defino a instituição apenas como uma conveniência social em que cada indivíduo se identifica e vive a sua espiritualidade nas atitudes e jamais naquilo que a denominação classifica como a fé legítima. Por isto que surge a grande dúvida de qual a verdadeira religião? Do ponto de vista da instituição, cada uma se julga a verdadeira. Do ponto de vista da atitude, nenhuma instituição é verdadeira. As atitudes em relação ao próximo revelam a verdadeira religião independentemente da comunidade que se frequenta. Partindo deste princípio, o pentecoste faz todo sentido e as manifestações espirituais serão legítimas no sentido de gerar frutos para o Reino de Deus que, como já afirmei, existe somente um Reino e um só Deus que se manifesta em nós através do teu Santo Espírito. Para enxergar a verdadeira religião e a verdadeira igreja é preciso viver estas manifestações nas atitudes fazendo diferença na comunidade que frequenta. A comunhão é uma das manifestações do pentecoste. O amor ao próximo também é uma das manifestações do pentecoste. Considerar os outros superiores a si mesmo também é uma das manifestações do pentecoste. Amar a Deus acima de todas as coisas é o princípio de todas estas manifestações espirituais. O próprio Jesus foi confrontado pelos fariseus/religiosos para saber o que era mais importante que a religião. Observe o texto “Mestre, qual é o grande mandamento da Lei? Respondeu-lhe Jesus: Amarás a Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento. O segundo semelhante a este é: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os profetas”. Mateus 22:36 a 40. As demais doutrinas dependem absolutamente em tudo destes dois mandamentos. Os sacerdotes tentavam compreender esta perspectiva daquilo que eles já conheciam legalmente, pois, também tinham fome espiritual porque uma mera tradição não era o suficiente para saciar esta fome. As pessoas têm fome, não somente de comida física, mas, de saciar a fome espiritual. O que podemos concluir neste texto? “Declarou-lhes Jesus: Eu sou o pão da vida; o que vem a mim, de modo algum terá fome; e o que crê em mim, nunca jamais terá sede”. João 6:35. Logo após a multiplicação dos pães, a multidão procurava Jesus porque tinha fome, mas, não de pão, pois, já estavam saciados, mas, buscavam saciar a fome espiritual e não encontraram na religião dos judeus com os seus rituais da tradição que era conhecida por todos. Ainda faltava alguma coisa que estava muito além da religião e Jesus se apresentou como aquele que trouxe a legitimidade da tradição e do pentecoste.

Todos que se rendem ao evangelho são tradicionais/reformados. Mas, e os pentecostais, como se classificam neste contexto? A tradição nada mais é que a doutrina do mesmo evangelho dos pentecostais onde se encontram as manifestações espirituais. Todos os que são pentecostais, também o são tradicionais reformados. Não tem como dissociar um do outro, pois, os fundamentos de ambos são análogos. 

Para finalizar em grande estilo, creio que o texto de Paulo resume tudo o que se refere a atitude em relação a Deus e ao próximo: "O amor jamais acaba; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá;" (I Coríntios 13:8). Este pequeno trecho aborda tanto a crença dos pentecostais com manifestação de dons de profecias e de línguas e também dos tradicionais reformados na questão do conhecimento bíblico e o amor está acima de tudo e supera ambos os conceitos. Tanto a doutrina pentecostal como também a doutrina reformada, são apenas teorias dos homens. Amor não é teoria, é atitude correlacional e se revela na comunhão.

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