Venancio Junior
Confesso que, como
cristão-evangélico, ser identificado pela cruz sempre foi para mim algo
conceitualmente incômodo. Por que a cruz se no começo da era cristã o símbolo
era um peixe? Mesmo não tendo nenhuma “doutrinação” neste sentido,
parece que historicamente, este foi o símbolo adotado até o quarto século. De
qualquer forma, ambos os símbolos cruz e peixe são apenas uma maneira “forçada”
em se identificar com o cristianismo, porém, do ponto de vista doutrinário,
desnecessários. Sei que muitos julgarão um absurdo, mas, o evangelho nunca
insinuou qualquer devoção em relação a algum símbolo por mais que os seus
seguidores insistissem em adotar algum. Esta propensão a idolatria não era algo
recente. No antigo testamento, milênios antes de Cristo, no livro de Êxodo
20:04;05 o próprio Deus nos dez mandamentos exorta: “Não farás para ti
nenhum ídolo, nenhuma imagem de qualquer coisa no céu, na terra, ou nas águas
debaixo da terra. Não te prostrarás diante dele nem lhes prestarás culto,
porque eu, o Senhor, o teu Deus, sou Deus zeloso”. O que se entende por “imagem
de qualquer coisa”? Creio que não haja dúvidas que se refira a qualquer
artefato. Se tivesse de ter uma imagem para representar o cristianismo, a cruz
jamais faria parte desta lista. Aquela clássica cena do padre exorcizando o
demônio com a cruz é pura falácia. No livro de Marcos 16:17 o próprio Jesus
afirma: “Em meu nome expulsarão demônios”. O diabo nunca fugirá da cruz.
Porém, tentou de todas as formas evitar que Jesus morresse na cruz. No texto de
Mateus 16:23 Jesus quando predisse sua morte e ressureição, o diabo influenciou
o próprio apóstolo Pedro e Jesus teve de intervir expulsando Satanás.
Obviamente que o diabo não queria que morresse na cruz e muito menos que
ressuscitasse. Não há respaldo bíblico explícito, mas, dizem que, após este
fato consumado, Jesus foi ao inferno tomar as chaves da vida e da morte
(Efésios 4:9). Na sequência, o que Jesus quis mostrar a todos quando disse: “Se
alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome diariamente
a sua cruz e siga-me”? Com certeza não foi no sentido literal em pegar
um artefato e carregar. Jesus morreu na cruz por todos, porém, Ele conhece a
nossa intimidade e atentou para que cada um reconhecesse a condição de
pecador e o sacrifício na cruz para o perdão dos pecados que é possível somente
através de Jesus cujo sangue foi vertido na cruz. Lembro que a morte foi para o
perdão dos pecados e a ressurreição foi para proporcionar a vida eterna. Se
Jesus não ressuscitasse, em vão seria a morte na cruz, consequentemente não há
ressurreição sem a morte. Até então, Pedro desconhecia este processo na
íntegra, pois, era muito colérico e racional faltando-lhe a fé.
Onde surgiu a ideia
em utilizar a cruz como símbolo do cristianismo? Vamos recorrer à história que
conhecemos. O cristianismo primitivo adotou ou era identificado pelo peixe em
alusão aos discípulos que eram pescadores de fato. O próprio Jesus quem aludiu
esta definição de pescadores de homens, porém, sem qualquer intenção em criar
um “ranço simbólico”. Sequer criou a religião cristã ou o
cristianismo como uma ideologia. O ser humano sempre teve dificuldade em se
identificar sem adotar uma referência visível e palpável. Na religião, principalmente,
esta busca por alguma identificação e até mesmo para “visualizar o caminho
da oração” e concretizar a crença, precisou criar os seus símbolos de
estimação. Talvez o contexto da época em que tudo era desconhecido em termos de
evangelho e alguns ainda nem tinham sido escritos, esta necessidade de
identificação tenha sido impingida pelo povo hebreu desde a libertação do jugo
egípcio em que criavam sem qualquer critério de razoabilidade os seus símbolos.
Considerando que o termo cristão tinha um sentido pejorativo no mesmo nível de
mendigo ou pobre, era preciso concatenar a fé de alguma forma. Esta adoção até
fazia sentido, pois, o processo de salvação que Jesus trouxe era ainda, de
certa forma, incompreensível e as pessoas movidas por algum tipo de vontade em
não ser associadas ao império romano e nem com a religião oficial, o judaísmo,
assumiram o símbolo e o termo cristão ratificando a sua autonomia. Jesus nunca
instou qualquer identificação simbólica, com exceção da ceia para nos lembrar o
sofrimento do corpo e a aspersão do sangue em nosso favor. Fora isto,
absolutamente nenhum outro símbolo foi sugerido. Considerando a ceia em memória
do sofrimento de Jesus, a cruz, neste caso, foi a ferramenta de tortura e morte
causando muitos traumas a quem era crucificado. Jesus não estava com um
crucifixo mostrando aos seus discípulos. Os únicos símbolos utilizados nesta
celebração foram o pão e o vinho. Neste caso, a cruz como símbolo chega a ser
até estranha. A cruz nada tem a ver com ressurreição que é a apoteose do
processo final da salvação. O padre dominicano Jerome Murphy-O’Connor,
professor de Novo Testamento na Escola Bíblica de Jerusalém afirmou que
utilizar a cruz como símbolo é o mesmo que “pendurar pequenas cadeiras
elétricas no pescoço”. Ele acreditava que é improvável que alguém usasse
uma cruz como símbolo religioso no início do movimento de Jesus, pois, se
tratava de um símbolo de tortura e não de redenção. E se Jesus tivesse sido
enforcado, será que teria de usar uma corda no pescoço? Então, quem foi o
idealizador do símbolo da cruz? Ressalto que Jesus jamais sugeriu adotar
qualquer símbolo, nem mesmo o peixe. Então, precisamos avançar na história até
chegarmos no imperador Constantino que foi quem “implantou” a cruz como
o símbolo oficial do cristianismo no período do seu império. Provavelmente foi
no episódio ocorrido na batalha de Adrinopla quando contemplou uma cruz e
acreditou que este tenha sido um sinal de Jesus Cristo. A partir de 392 d.C. o
cristianismo tornou-se a religião oficial do império romano o que fortaleceu a
adoção do símbolo da cruz. Ainda não havia a dissensão cristã entre católicos e
protestantes. A igreja cristã era única.
Voltando ao Novo
Testamento que é o cenário onde aconteceu todo o processo que envolveu a cruz,
observo que há vários textos relativos a cruz, mas, vamos nos ater apenas a
dois textos. O primeiro em Gálatas 6:14, Paulo respondendo aos vaidosos da
religião judaica coloca toda soberba e toda glorificação da tradição na cruz de
Cristo. Isto significa que não se tem que orgulhar por causa da religião, mas,
tudo o que somos deve ser “consumido”, não por causa da cruz, mas, pelo
sacrifício do corpo de Jesus. O apóstolo Paulo afirmou que se gloria na cruz de
Cristo. O que isto significa? Creio que Paulo foi, de certa forma, irônico por
associar glória e cruz e submeteu toda vaidade, toda soberba e toda presunção
humana na cruz como forma de neutralizar estes sentimentos nocivos a
espiritualidade. Em Romanos 6:6 tem um texto muito forte que diz: “...sabemos
que a velha criatura foi crucificada com Jesus, para que o corpo do pecado seja
destruído...”. Neste texto, a cruz é ferramenta de destruição e a morte e
ressurreição de Jesus é que restaura a vida em nós que foi consumida pelo
pecado. Não faz sentido se aproximar da cruz, orar aos pés ou diante da cruz. O
papel da cruz no processo de salvação é humilhação e tortura, mas, não do homem
e, sim de Jesus em nosso lugar e nEle se resume a confiança unicamente pela fé.
A utilização da cruz como demonstração de espiritualidade é equivocada. É um
mal costume da tradição religiosa combatida por Jesus que exorta os fariseus e
escribas afirmando no texto de Mateus 15:6: “E assim por causa da vossa
tradição invalidastes a palavra de Deus. Hipócritas!”. A cruz, neste caso,
faz parte da tradição dos homens. A religião nos impõe a veneração da cruz, enquanto
o evangelho nos recompõe e nos reconduz ao caminho da salvação e adoração
unicamente a Deus sem qualquer auxílio de imagem esculpida e somente a Ele
devemos orar em nome do seu filho Jesus. A nossa marca que nos identifica com
Cristo é o do verdadeiro discípulo descrito nas bem-aventuranças e nos frutos
do espírito. São marcas “abstratas”, porém, que faz toda a diferença na
nossa concreta conduta humana desfigurada pelo pecado.
Tenha sempre em mente
Jesus Cristo que é o autor e consumador da nossa fé (Hebreus 12:2) e em Deus
que é digno de toda honra e glória! (Apocalipse 4:11).
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