Venancio Junior
O que seria o resto do prato? Para os que têm
comida à mesa, é uma porção que vai para o lixo, pois, estão fartos e para nada
mais serve. Para os pobres que não tem o que comer, é um banquete que vai matar
a fome, esta que é uma companheira quase inseparável. Percebe-se que, mesmo
pertencentes a uma mesma sociedade, são de camadas distintas, pois, enquanto um
menospreza, outro valoriza. As perspectivas são diferentes e revela um
antagonismo social persistente.
Mas, trazendo para o campo da metáfora, tem dias e
situações que passamos como se fôssemos o resto do prato. A sociedade nos
considera desta forma quando não somos aquilo que esperava ou não possuímos o
suficiente para sermos considerados como um prato principal. Emocionalmente
também podemos ser classificados desta forma quando não nos sentimos
valorizados pelas pessoas com as quais convivemos. Este sentimento também pode
acontecer no ambiente de trabalho quando as expectativas nos resultados estão
aquém do esperado pelos superiores. Esta é uma perspectiva que permeia os
relacionamentos. Muitos consideram o outro como o resto do prato quando está
farto, sendo descartado porque não tem mais nada a oferecer.
Há a situação também em que a pessoa é
exaustivamente explorada seja no trabalho ou no relacionamento social e
conjugal que fica numa condição de resto do prato. Alguns relacionamentos estão
sobrevivendo com a sobra do resto do prato. Parece que o único alimento é
aquele restinho de comida requentado. Não se consegue mais nem “beliscar”.
Outra situação que podemos utilizar esta metáfora é
quando uma pessoa se entrega a outra ou a algum trabalho e o que sobra de si
mesma é somente o resto do prato. Nas sociedades organizadas, por exemplo, nas
igrejas também acontece muito isto. Uma pessoa tem a melhor das intenções em
servir a causa e se dedica de forma exaustiva que quando volta para casa, a sua
comida principal que tinha a oferecer por direito em casa foi consumida
inadvertidamente, a sobremesa que era para dar um toque refinado após o jantar
se esvaiu e nada mais tem a oferecer, o que sobrou de si mesmo é somente o
resto do prato. Pode acontecer também, numa eventual crise emocional e, numa
frustrada tentativa em suprir o vazio conjugal, alguém se entregar a outra
pessoa oferecendo o melhor de si que é o prato principal e o que fica é a
sensação de que sobrou ao cônjuge somente o resto do prato.
A vida tem estes arcabouços que aprisionam a emoção
que se torna refém das circunstâncias. Ser alguém livre e ter a oferecer e ser
o prato principal na vida das pessoas é tarefa muito difícil e o cardápio deve
ser analisado e refeito diariamente. Nossos valores e o que somos devem constar
como o prato principal no cardápio da vida. Não tem como alimentar os
relacionamentos para que valha a pena sem ter alimento saudável à mesa.
Infelizmente a realidade não é tão fácil de
digerir. Muitas vezes se oferece o melhor alimento e se recebe o resto do prato
e isto se torna uma rotina cruel que gera subnutrição emocional. A tendência é
o desfalecimento gradual e precoce. O personagem do filme O Coringa é um
estereótipo de tudo o que representa o resto do prato. Uma pessoa normal, mas,
que sofreu alguns reveses sociais que foram minando a sua personalidade a ponto
de sobrar somente o resto do prato. Será que o que ele tinha a oferecer foi
causado pelo que a vida lhe reservou? Ele foi isolado e desconsiderado pela
sociedade, fracassou na sua profissão de palhaço e jogou a culpa naqueles que
julgou como, de fato, culpados pelo seu fracasso na vida e a reação dele foi de
alguém que era somente o resto do prato. Não soube administrar os seus
fracassos. Os mendigos que perambulam pelas ruas também culpam a sociedade
pelos seus fracassos e julgam que todos devem ajudá-los, porém, conforme eles
querem e do jeito que bem entendem. O que eles têm a oferecer é somente o resto
do prato das suas vidas e muitos buscam, literalmente, o resto do prato para
comer revirando as lixeiras. Não conseguem enxergar o prato principal nas
oportunidades que lhe são oferecidas e continuam revirando o lixo das suas
vidas em busca do resto do prato.
Todos são potenciais vítimas do resto do prato da
violência urbana, pois, sempre há algum desajustado querendo culpar os outros
por se tornar o resto do prato. As vítimas também são encontradas no
feminicídio quando o relacionamento sobrevive somente com o resto do prato
emocional. E por que não dizer que também vítimas são encontradas nos templos
religiosos quando a perspectiva do evangelho não é mais o alimento saudável
para a alma e se tornou apenas o resto do prato? Muitas pregações são
verdadeiros restos do prato que a bíblia classifica como as migalhas enquanto o
banquete está posto à mesa.
Enfim, diante desta exposição de um malfadado banquete, como reagir proativamente para que o resto do prato deixe de ser o cardápio principal das mesas dos relacionamentos? Como já mencionei, a bíblia fala sobre as sobras da mesa que os cachorrinhos comiam num diálogo entre uma mulher Cananéia, mãe de uma filha que estava sofrendo possessão demoníaca e Jesus. Basicamente, mesmo em profundo desespero e clamando por misericórdia, a mulher foi muito sábia, pois, conforme a tradição, Jesus havia dito que não é muito certo tirar a comida dos judeus para dar aos gentios e a mulher foi ousada rebatendo que os gentios também comiam da mesma comida que os judeus, mesmo sendo a sobra da comida. Os judeus tinham muito preconceito para com os gentios e os consideravam, naquele contexto, como o resto do prato. Jesus foi aquele que se ofereceu a comer o resto do prato com aqueles que sofriam, “chorar com os que choram (Romanos 12:15)’, “andar duas milhas (Mateus 5:41)”. Demonstrou isto nas bem-aventuranças contidas no livro de Mateus 5. Jesus discorreu sobre a condição daqueles que são considerados como o resto do prato na vida e muitas vezes se encontram no fundo do poço. Pode ser que, uma vez no fundo do poço, Jesus não a livre desta condição de imediato, mas, com certeza, estará com a pessoa no fundo do poço para ajudar a sair daquele lugar. Posso até dizer que Jesus na cruz foi o resto do prato dos religiosos, no entanto, mesmo nesta condição desprezível, saciou a fome dos marginalizados restaurando a vida em toda a humanidade. Não importa também se tem comida à mesa ou não, todos precisam da misericórdia de Deus. Ele é o único capaz de transformar uma vida de caos social ou emocional, numa vida abundante. Uma das posturas mais eficazes é a generosidade doando a sua própria vida para que o próximo tenha uma comida saudável. Jesus doou a sua própria vida para que pudéssemos herdar um lugar à mesa no banquete do Reino. Ele próprio se colocou como o pão da vida na memória da sua morte. Seguindo este exemplo de Jesus de entrega ao próximo, cada pessoa pode ser esta comida saudável que irá nutrir aqueles que passam fome de justiça e também passam fome de verdade. Lembrando que entregar o que sobrou não tem qualquer significado. Deve-se compartilhar o que tem. O conceito do evangelho de Jesus é que cada pessoa se preocupe em suprir a necessidade do outro, tipo, compondo a mesma mesa com direitos e oportunidades iguais. Ninguém passaria necessidade e o conceito de resto do prato teria destino certo somente as lixeiras.
Belíssimo texto, bastante reflexivo. Parabéns Júnior,
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