Venancio
Junior
Ano
novo, vida nova, novos planos, novas ideias, possibilidade de novos
relacionamentos, novos projetos e os velhos e necessários princípios para quem
leva muito à sério as boas práticas da espiritualidade. O velho hábito em amar
ao próximo como a ti mesmo e a velha mania em dar a outra face dentre outros
princípios, mesmo não se colocando em prática, não perderam o seu valor. Pode até
ser velho, mas, esta mania na prática, se torna nova a cada desafio. No ano
velho nos roubaram a alegria, o prazer, a paz e a esperança e no ano novo
estamos maltrapilho ou nu e ainda precisaremos continuar dando a outra face. Estes
princípios não mudam, nós é que envelhecemos em nossos pecados. A renovação
espiritual não é um delírio e nem emoção que causa arrepios, mas, é retomar o
caminho do crescimento que, nem sempre é fácil, porém, necessário. O convite de
Jesus em dar a outra face é voltar ao caminho e vai além do sentido literal. Dar
a outra face não é um momento de reação aplicada numa situação específica, mas,
um estilo de vida. Dar a outra face vai muito além de um momento em que se
precisou demonstrar humildade expandindo e aprofundando a atitude de entrega.
Doar um “pedaço” de si e caminhar junto não importando a distância são
prerrogativas dentre várias outras do discípulo. Talvez o primeiro
questionamento que vêm à mente seja, “dar a outra face” não seria fazer papel de
trouxa? Aparentemente tudo indica que sim, mas, esta é a ótica da mente de uma
sociedade doentia que pensa só em si mesma. Dar a outra face é viver na
contramão e romper a lógica de alguém egoísta e quer levar vantagem em tudo. Esta reação é uma contraposição que desperta a mente do outro para aquilo que é honesto e sadio
e faz bem ao coração elevando o caráter. Mas, tudo tem limite.
Mateus
e Lucas relataram esta parte significativa do sermão do monte proferido por
Jesus. Na minha visão, a outra face resume tudo o que foi dito sobre o sermão
do monte. A característica do ser humano condizente com as bem-aventuranças
propensa a dar a outra face é aquela resgatada pela graça e restaurada pelo
amor de Deus. Não se trata de um sentimento de autocomiseração e muito menos de
sacrifício de tolo. A outra face não é uma atitude impetuosa, mas, um modo de
vida em Cristo como nova criatura. O contexto decadente da nossa sociedade
exige como contraponto que é preciso dar a outra face para ser discípulo legítimo, o sal da
terra.
A
submissão a este processo é continuamente dar a outra face. Conviver com alguém
difícil é dar a outra face. Fazer o que não quer, mas, o que precisa é dar a
outra face. Fazer o bem a quem lhe faz o mal é dar a outra face. Negar-se a si
mesmo como Jesus sugeriu é dar a outra face. Imagine conviver com alguém que te
persegue e que emocionalmente te faça mal? De certa forma, é dar a outra face.
Coloco assim porque esta situação não é uma regra. De repente, as pessoas
sofrem por motivos diversos e permanecer nesta condição nem sempre dar a outra
face é a atitude adequada. No relacionamento, cada um tem a sua parcela de
"culpa" ou responsabilidade porque a humildade não deve ser sinônimo
de sofrimento generalizado. Muitas pessoas demonstram humildade e reagem
proativamente sem necessariamente estarem sofrendo algum tipo de assédio moral,
físico ou emocional.
Praticar a humildade não se trata de ser arrogante e acordar humilde e permanecer assim a partir daquele dia. Humildade não é uma postura isolada, mas, a postura isolada revela a humildade. É um processo que demanda basicamente renúncia e escolhas. Não pense que quanto mais decisão de boas escolhas e de renúncia a pessoa se tornará mais humilde. Não existe grau de humildade. Por exemplo, afirmar que aquela pessoa é muito ou pouco humilde não existe. O que existe é relativo à personalidade. Tem pessoas que são mais tranquilas que outras e demoram a reagir, enquanto tem outras que são mais explosivas. Tem pessoas minimalistas e tem as vaidosas e gananciosas. Em qualquer situação e independentemente do que a pessoa seja, trago o texto do apóstolo Paulo quando diz que é forte quando é fraco. Ele quis dizer que quando há a consciência da condição de pecador que carece da graça e misericórdia de Deus (sem soberba) é que se está forte não importando o que a pessoa é. Mas, quem deve considerar este valor é somente Deus. Ninguém deve se vangloriar com a humildade, obviamente deixará de ser humilde. O único caminho da espiritualidade é ser humilde em dar a outra face sendo vazio de si e com disposição máxima e contínua em servir ao outro.
Atualmente com a facilidade da comunicação presenciamos pessoalmente ou nas redes sociais pessoas (pela reação, não mereceriam serem tratadas como pessoas) que perdem a oportunidade em dar a outra face e fazer diferença no cotidiano. Tenho uma frase que diz: “A vida é simples, basta que cada um faça a sua parte”. Muitos não tem feito a sua parte em dar a outra face e reagem com ódio por motivos banais. Acredite, não é fácil, mas, é libertador conseguir dar a outra face. Precisamos ser libertos da raiva, do ódio, da ira e dos impulsos agressivos que nos aprisionam. Ao invés de exigir aquilo que se julga ser os seus direitos, dê a outra face. No trânsito acontecem as mais difíceis situações em que o desafio em dar a outra face revela o que somos, de fato. No convívio do trabalho também acontecem desafios que colocam em prova a nossa condição de discípulo. Aqueles que são “passados para trás” e são preteridos a uma promoção, como dar a outra face? Na vida social com os amigos onde, ultimamente os valores perderam o ponto comum de compartilhamento e se polarizaram, está muito difícil dar a outra face. Pessoas queridas e muito próximas tem atitudes que exigem um sacrifício inimaginável. Nas reuniões de família houve grandes desfalques porque se esqueceram de dar a outra face. Na igreja, por incrível que pareça, pois, todos teoricamente são discípulos, também existem os desafios para exercer a prática da humildade em dar a outra face. A religião ao invés de unir e reunir, tornou-se motivo de discórdia. E no relacionamento conjugal? Cujo nível é o mais próximo possível e não pode ser de outra maneira e, conforme o tempo passa há um visível desgaste, o relacionamento sofre desafios diários constantes onde tem acontecido muitas agressões e até feminicídios e os motivos não justificam os meios bárbaros porque faltou dar a outra face. Nestes casos de violência doméstica, faltou ao agressor dar a outra face. Uma atitude muitas vezes difícil, mas, um gesto muito simples. Como dar a outra face se uma das partes cede como forma de sujeição e se anula a ponto de subsistir com as suas próprias forças? Qual o limite para isto? Como dar a outra face quando o relacionamento não redunda em afeto, carinho e um se submetendo ao outro? Como dar a outra face quando acontece uma traição? Como dar a outra face quando cada um exige que deva ser satisfeito pelo outro?
A
espinha dorsal do relacionamento é um sustentando o outro. Não existe outro
critério. Dar a outra face é o princípio em qualquer processo que envolva duas
ou mais pessoas porque vai além dos limites da obrigatoriedade. Porém, devemos observar
que, se esta condição se perpetuando sem que a outra parte não reconsidere que deve
reagir e se esforçar também para que não se anule uma das partes, dar a outra
face deve ser uma excepcionalidade e não uma atitude que seria como “dar murros
em ponta de faca” que não trará a solução adequada. Jesus nunca nos disse que
devemos ser tolos porque dar a outra face é sempre uma reação. O problema é que muitas vezes esta atitude de humildade não
tem mudado a outra pessoa ou a si mesmo e acabamos por ter um comportamento aparentemente de
tolo. Eu creio que a atitude em dar a outra face é quando os problemas do
relacionamento ainda estão na superfície. Digo isto no sentido de que só existe
uma profundidade no relacionamento. É preciso observar o que se encontra nesta
profundidade, o amor ou os problemas? Os dois não subsistem concomitantemente. O
“romantismo” no relacionamento em qualquer nível ou situação tem limites. Razão
e coração deverão caminhar juntos. Onde um está ausente, o outro avança os
limites para suprir esta carência. Porém, tudo tem seu limite e o desgaste não
pode chegar a níveis de flagelo emocional e uma decisão radical deverá ser
tomada. Muitos fatores deverão ser considerados e não pense que não haverá
perdas. Sempre há. Dar a outra face no relacionamento é também interromper um
processo que tende ao fracasso. Em muitos casos, dar a outra face é renunciar a
intensidade de um relacionamento doentio e se projetar no conforto da solidão
para se recompor. Não é exatamente se isolar, mas, deixar de exigir que as
pessoas supram as suas necessidades. Dar a outra face é como dar um grito no
deserto de valores que se tornou este mundo onde poucos sobrevivem, incluindo
você mesmo. Resumindo, dar a outra face não é fazer, mas, mostrar com atitude o
que o outro tem de fazer.
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