terça-feira, 23 de abril de 2024

RELACIONAMENTOS ÁCIDOS

Venancio Junior

De cara já derrubo qualquer definição que espalham por aí de que seja possível viver um relacionamento com liberdade e sem a entrega. Não é possível. A partir do momento que se decidiu conviver com alguém o óbvio é que haja uma entrega, não importando se é em maior ou menor grau. Alguma coisa de si terá de ser doada para o parceiro ou parceira. Quanto mais tempo de convivência, mais intimidade, mais envolvimento e mais entrega. A melhor forma de se relacionar é na teoria e a pior é na prática. Tem aquelas pessoas que não conseguem se relacionar consigo mesma, imagine quando alguém “invade” a sua privacidade?

A partir do momento que houve a entrega, será que a pessoa que recebeu um “pedaço” de você fará bom proveito? Será que você fará bom proveito do pedaço que lhe foi dado? O sentido de dar, neste caso, não é uma transferência de propriedade. É usufruir e descobrir o melhor da pessoa.

Relacionamento é a melhor e, talvez a única forma de crescimento como pessoa. Digo isto porque envolve mais dedicação ao próximo do que qualquer outra postura no compromisso com o semelhante. Não existe vida social e não existe família sem o processo do relacionamento. Na religião, não existe igreja sem o relacionamento porque a estrutura de formação é ajuntamento e comunhão.

Existem três tipos de relacionamento, sólido, líquido e ácido. Este último, inclui porque percebi que, contrariamente aos dois primeiros, existe um tipo de relacionamento em que a pessoa está envolvida por obrigação com alguém por motivos que fugiram das circunstâncias normais. Os três tipos são aplicados em todos os níveis de relacionamento, seja social, conjugal ou profissional.

O relacionamento sólido é aquele que tem raiz e mesmo diante de dificuldades, se mantêm intacto com objetivos de construir valores para continuar juntos. As pessoas envolvidas têm o mesmo objetivo e isto facilita consideravelmente a relação. Apesar da pulverização do conceito de relacionamento, ainda existem casais, amigos e familiares que se amam. Porém, tudo tem o seu limite, mesmo o relacionamento sendo sólido, não se deve deixar que o coração seja absoluto nas decisões onde mais apanha do que bate. Por outro lado, a razão é necessária para dar equilíbrio e força na construção do relacionamento. Razão e coração devem caminhar juntos e serem parceiros na alegria e na dor.

No relacionamento líquido, há meramente um compromisso, porém, sem se aprofundar não formando raiz. Geralmente a motivação é por algum interesse conveniente. Durante o tempo que permanecem juntos não se aprofundam e permanecem apenas na superfície e se dilui por falta de envolvimento. Este tipo de relacionamento em que não há envolvimento e nem consta na agenda qualquer movimento neste sentido, geralmente é movido por interesses que não visam construir pilares na relação, pois, o objetivo é apenas extrair da pessoa aquilo que lhe satisfaz, nada mais que isto. Muitas pessoas se tornam apenas úteis, inclusive, nos relacionamentos conjugais que, infelizmente, estão se tornando líquidos e quem sofre são os filhos e a sociedade. A esposa é útil porque cuida da casa. O esposo é útil porque paga as contas. Pelo menos antigamente funcionava desta forma. Este tipo de relacionamento mudou muito. A mulher tem adquirido com muito esforço e mérito o seu espaço de vanguarda na sociedade. Tem um outro ponto que, por incrível que pareça, também sofreu mudanças significativas, o ato conjugal no sexo. Alguns casais não eram criativos e se mantinham tradicionalmente em que o homem é ativo e a mulher passiva apenas para procriação. Com esta mudança de paradigma, nem tudo está perdido, ambos agora são, no mínimo, úteis um ao outro porque se descobriram no sexo.

O relacionamento ácido é o pior de todos. Por algum motivo há a obrigação em se manter na relação. Alguns exemplos, no trabalho quando o superior tem um comportamento em se impor à revelia do que seja adequado ao trabalho ou o ambiente é muito carregado pelo mau humor e reclamações, a falta de reconhecimento profissional e a instabilidade no trabalho tornam o relacionamento profissional muito ácido, porém, precisa se manter porque o trabalho é fundamental para o sustento. Na vida social, um vizinho ou um familiar que não coaduna com o tipo de pessoa e que sempre está provocando e qualquer reação comprometeria outros fatores importantes nos contextos da moradia e da família. A polarização política foi o principal motivo de muitos relacionamentos se tornarem ácidos e revelou a acidez de algumas pessoas. Estas pessoas que brigaram pelas redes sociais e nos encontros familiares ainda mantêm o contato, mas, o desgaste é inevitável e não há qualquer perspectiva de uma reconsideração de ambas as partes. Muitos casais, amigos e até familiares cortaram o relacionamento porque se tornou ácido. Optaram em se distanciar a utilizar o bom senso em manter o relacionamento. Quando isto é possível, resolve o problema em não se desgastar emocionalmente que é o que mais sofre.

Outro grande problema no relacionamento ácido que, além da obrigatoriedade no compromisso, foram construídos pilares para que o relacionamento forçosamente se mantenha e a projeção no horizonte está fora de controle. Quem nunca ouviu falar que muitas pessoas, sem saber, dormem com o próprio “inimigo”. O pior deste nível é a confiança depositada o que, nesta condição, espera-se algo em troca. Como já afirmei noutra reflexão, relação é contato, mas, jamais deve ser a nível de agressão física. Nos últimos anos, temos visto nos relacionamentos que se tornaram ácidos muitos feminicídios. Contrariamente ao que se imagina, existe também o “masculinicídio” quando a mulher tem o objetivo de eliminar fisicamente o parceiro. O número é relativamente bem menor porque culturalmente o homem se julga o dominador. É diferente quando acontece por defesa pessoal em que a mulher estava sendo ameaçada. Em todo caso, estes absurdos extremos acontecem porque a relação se tornou ácida. É um termo figurado porque o ácido corrói quando em contato com qualquer superfície. Não existe matéria que resista ao ácido. É um termo apropriado porque relação é contato e não há resistência quando uma das partes perdeu o foco da construção do bom senso que é um dos pilares de sustentação do relacionamento.

Infelizmente, há relacionamentos em que não se enxerga uma solução para diluir o ácido. Existem muitas pessoas que vivem ou sobrevivem dentro de um relacionamento em que o casal perdeu a sintonia e a sincronia. O motivo em se manter dentro do relacionamento não é mais por amor e o carinho ao outro não faz parte das atitudes de afeto. Isto vale para a amizade também. No caso conjugal, alguns fatores devem ser considerados. Tem relacionamentos que se perdeu a conexão e não estão mais em sintonia. Conexão e sintonia mesmo similares, são coisas diferentes. Para que haja sintonia é preciso ter a conexão. Enquanto sem a sintonia, a conexão perde a razão de ser. Wi-fi é uma conexão que viabiliza a sintonia com as redes socais. Mesmo não sintonizando o conteúdo digital, isto não significa que esteja sem conexão. No relacionamento, o ambiente é a conexão. O propósito é a sintonia. É possível sobreviver num relacionamento ácido porque ainda compartilham o mesmo ambiente, porém, estão fora de sintonia nos objetivos. Resolver esta questão é uma decisão muito pessoal. Cada pessoa deve considerar os ganhos e perdas. Ninguém merece viver uma vida onde as frustrações sejam incessantes. Cada pessoa tem o direito de ser bem-sucedido nas esferas da vida que o envolve. Por isto que falei sobre a razão e o coração, um dando suporte ao outro. Tem situações que, numa eventual e momentânea crise, o coração precisa se antecipar e realinhar o relacionamento. A razão deve entrar em campo quando a situação se tornou insustentável e não se consegue encontrar um denominador comum para que a sintonia seja restabelecida. O desgaste é o pior fator a ser considerado e deve ser interrompido imediatamente ao ocorrido. Feridas estão abertas e as chances no processo de cicatrização serão bem maiores quando se corta o mal pela raiz.